A Saturação da Experiência

À medida que me vou envolvendo mais e mais no mundo do anime e vou acompanhando discussões em fóruns do género vou-me apercebendo mais de um fenómeno que não é certamente único entre os fãs de anime mas sim mais geral e aplicável a fans de qualquer tipo de obras sejam textos escritos, musica ou qualquer outro tipo de “arte”. Falo claro da crescente apatia que os adeptos mais ferrenhos de um determinado estilo vão desenvolvendo com o tempo em relação ao seu meio de eleição e que em casos mais extremos podem levar mesmo a tornar a pessoa excessivamente critica do meio efectivamente afastando-a daquele que foi o seu passatempo durante um elevado período de tempo pois simplesmente deixaram de conseguir gostar das obras.

Isto veio ao lume devido a uma discussão interessante com que me deparei sobre uma cena em particular do anime Fractale que estreou na passada quinta-feira e onde se debatia se o excesso de à-vontade de uma personagem feminina em tirar a roupa era perfeitamente natural no contexto da historia ou se era uma forma descarada de agradar à audiência otaku que muitos vêm como dependente da sexualização das personagens.

(Já agora deixo a nota que este Fractale me surpreendeu pela positiva com uma arte, banda sonora e até premissa muito reminiscentes de um filme de Miyazaki e do estúdio Ghibli o que é possivelmente o melhor elogio que posso dar a uma obra de animação japonesa)

O que me interessou na discussão não foi o debate em particular mas sim o facto de este ser um caso em particular onde é relativamente claro que a questão nem sequer se coloca contrariamente ao que é infelizmente perfeitamente normal no meio. Achei curioso membros mais “experientes” estarem a considerar alguns detalhes como aquela cena um factor de excesso de sexualização assentando-se na sua experiência dos últimos tempos com os estúdios de animação a procurarem usar a chamado fanservice como forma de vender mais ao publico otaku quando na realidade estavam a sobre-analisar uma cena perfeitamente normal e devidamente contextualizada dentro da historia.

Mas não é só entre otakus que isto acontece pois é certamente fácil a qualquer pessoa encontrar paralelismos com muitos outros tipos de fãs e é particularmente comum ver pessoas saltarem a todo e qualquer tipo de demonstração sexual numa série de televisão ou longa metragem como uma tentativa de chamar mais o publico. Um bom exemplo talvez seja a primeira temporada da série televisiva Rome que nunca teve grandes inibições em mostrar as personagens por vezes em pleno acto sexual sem que isso possa ser criticado como fora de contexto apesar de ser parte integrante da época retratada na série (os romanos estão na origem da palavra bacanal por exemplo) e no entanto muitas terão sido certamente as criticas a este tipo de cenas.

De onde origina então este instinto de muitos em gritar “Lobo” a cenas que para muitos outros são perfeitamente inocentes? Existem certamente diversos factores e vou tentar aborda-los aqui mas relembro que não tenho qualquer treino profissional na área e é meramente a minha opinião pessoal (e obviamente que receberei de bom grado todo e qualquer comentário).

No que toca à questão do sexo seria simples deitar as culpas à repressão sexual forçada na sociedade ocidental por parte da religião crista nas suas mais diversas formas ou ao chamado “politicamente correcto” (que na realidade é exactamente a mesma razão na minha opinião) mas eu acho que o factor saturação é também algo a ter em conta. Mas a saturação não é só uma boa justificação no que toca à questão da sexualidade como também a muitos outros: enquanto que para uma criança pode ser fantástico e simplesmente genial ver uma série onde o personagem principal viaja pelo mundo a encontrar novas aventuras e a salvar sempre o dia no final do episódio para todos os outros que cresceram a ver 1001 séries assentes na mesma premissa vai certamente parecer banal e repetitivo.

Quantos da minha geração não viram religiosamente séries como O Justiceiro na sua infância achando que era do melhor que se podia fazer em televisão? Será que hoje pensariam o mesmo ao ver as mesmas historias? Dir-me-ão que o mundo evoluiu e mudou o que é verdade, que as historias simples já não vendem e é preciso a complexidade de um Battlestar Galatica mas aí eu pergunto: como explicam então o cancelamento de Caprica e as audiências crescentes de coisas como o MMA?

O problema é que nós vamos-nos tornando mais exigentes com o que vemos. Um bom exemplo é o cliché de que os críticos de cinema “nunca gostam do que é popular” por exemplo. Não é tanto que os críticos estão tão “na moda” que tudo o que é popular está automaticamente fora de questão gostarem mas sim que eles já presenciaram tantas obras que se começa a tornar difícil surpreende-los pela positiva pois tornaram-se demasiado críticos em relação ao seu objecto de critica ou como se diria nos países de expressão inglesa tornaram-se jaded.

E este é então o ponto a que queria chegar: por vezes todos nós caímos na armadilha de não apreciar correctamente aquilo que temos à nossa frente para desfrutar pura e simplesmente porque nós tornamos excessivamente críticos e exigentes. Por vezes vale a pena reduzir um pouco as nossas expectativas e abrir um pouco os nossos horizontes, deixar de lado as ideias pré-concebidas e tentar activamente não descartar algo que nos parece banal, tentar encontrar mais as qualidades em vez dos defeitos para não corrermos o risco de descartar tudo com um comentário sarcástico qual caricatura de um critico.

Escrevi este post mais por mim do que outra coisa. Não foi de hoje, nem de ontem, nem sequer da semana passada mas tenho vindo a perceber que em vários aspectos me tornei excessivamente critico e rápido a desprezar as coisas com um comentário sarcástico de quem acha que já viu tudo sem dar sequer uma oportunidade. É um defeito meu? Sim é mas é algo que está mais ou menos presente em todos nós e só queria aqui falar um pouco sobre o assunto. No fundo queria ser mais como a Akari de Aria que vive dia após dia a ficar impressionada pelas mais banais descobertas à sua volta, queria ter de volta aquele espírito infantil de descoberta que todos nós tivemos e que vamos lentamente perdendo à medida que envelhecemos.

E vocês? Já alguma vez sentiram o mesmo?